Um armário cheio de roupas ainda sem usar,
peças e produtos comprados sem necessidade e a sensação de prazer imediato que
desaparece dias após a compra foram os sinais que fizeram a jornalista Flávia
Vargas, 44 anos, perceber que estava comprando por compulsão.
“Comecei a ter compulsão por compras durante
a pandemia. No início do isolamento social, descobri dois aplicativos de vendas
e não parava de comprar. Dava uma sensação de prazer, de compensação pela
ansiedade do momento. As compras se tornaram incontroláveis. Meu armário ficou
abarrotado, inclusive com roupas que ainda não usei”, conta.
Mesmo com a flexibilização das medidas de
isolamento e a abertura do comércio, ela continuou comprando pelos aplicativos.
“Eles oferecem tantos atrativos que se tornou um hábito entrar neles todos os
dias, ainda que fosse apenas para dar uma olhadinha e favoritar as peças que
mais gostei. Não cheguei a me endividar, mas os gastos prejudicaram muito meu
controle orçamentário e meu fluxo de caixa, sendo que sempre fui bastante
regrada com dinheiro.”
Segundo estimativas da Organização Mundial da
Saúde (OMS), cerca de 8% da população mundial sofre de oniomania, compulsão por
compras, também chamada de consumismo compulsivo e Transtorno do Comprar
Compulsivo (TCC).
A patologia é responsável pelo giro de mais
de US$ 4 bilhões na América do Norte. Entre 80% e 94% dos compradores
compulsivos são mulheres, cujo transtorno costuma surgir por volta dos 18 anos,
mostrou pesquisa publicada na Revista Brasileira de Psiquiatria.
Para o psiquiatra Adiel Rios, o isolamento
social imposto pela pandemia de covid-19 contribuiu para o aumento no número de
casos desse transtorno.
“Com as portas fechadas, muitas lojas
migraram para o e-commerce e quem já atuava neste modelo, reforçou a atuação nas
vendas online. E os aplicativos de redes nacionais e internacionais são uma
grande armadilha para os compradores compulsivos: eles disponibilizam cupons de
descontos, pontos para cada compra realizada, que são revertidos em desconto
para novas compras, entre outros atrativos. Para quem possui o transtorno,
acabou sendo uma forma fácil de comprar, e de maneira descontrolada”, detalha o
médico que atua no Programa de Transtorno Bipolar do Instituto de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(USP).
Segundo ele, mesmo com a abertura do
comércio, o comprador compulsivo continua utilizando as ferramentas disponíveis
no ambiente online, pois basta pegar o celular, entrar no aplicativo e comprar
o que quiser, a qualquer hora e em qualquer lugar.
“A única forma de interromper este ciclo
vicioso seria uma utilização racional ou até mesmo um distanciamento destes
aplicativos. Enquanto eles estiverem disponíveis no celular, será muito difícil
impedir as compras compulsivas, principalmente se a pessoa estiver ansiosa,
precisando preencher um vazio ou suprir alguma carência”, afirma Rios,
pesquisador no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
Quando percebeu que havia algo por trás da
compulsão por compras, Flávia procurou ajuda médica especializada e, hoje,
mantém acompanhamento com psiquiatra e psicólogo. “Fui diagnosticada com
depressão e transtorno bipolar. Estes quadros geraram em mim sintomas como
ansiedade e comportamentos impulsivos. Estou me tratando com antidepressivo e
lítio, que ajuda a conter as compulsões, além de acompanhamento psicológico.”
Além da medicação, a jornalista tem procurado
seguir as orientações dos especialistas em relação ao comportamento no dia a
dia. “Quando estou no celular, evito acessar os aplicativos [de compras], algo
que era impossível antes do tratamento. Na época, eu simplesmente olhava as
peças, gostava e comprava. Hoje, nas poucas vezes que entro e gosto de alguma
coisa, consigo pensar com mais racionalidade e me questiono: será que eu
realmente preciso disso?”.
Compras de fim de ano
Com a proximidade do fim do ano, quando há um
maior apelo por compras devido ao Natal e ao décimo-terceiro salário, o
psiquiatra afirma que há chances de o hábito de adquirir compulsivamente se
intensificar. Além disso, com o comércio aberto em horário estendido e sem
restrições, aumentam-se os canais de aquisição de produtos.
“A partir do momento em que o comprador
compulsivo mergulhou nas vendas online durante a pandemia, dificilmente irá
abandonar o hábito que se tornou sua válvula de escape no isolamento. Com a
reabertura, a pessoa volta a comprar na rua (quando sair) e também pelo celular
(quando estiver em casa). Ou seja, nunca houve tempo perdido, pois o compulsivo
não deixou de comprar. De certa forma, essa descoberta pelas compras online
durante o isolamento intensificou a compulsão”.
Para Flávia, que está em tratamento, a
estratégia para se controlar já foi traçada: ela só comprará presentes para a
família. “Não tenho nem mais coragem de comprar nada para mim agora. Também não
me sinto no direito de gastar comigo mesma, depois de tantas compras
desnecessárias que fiz. Inclusive, já separei muitas roupas para doar no Natal.
O retorno à realidade me fez enxergar de novo que há pessoas que realmente
precisam muito mais do que eu.”
Transtornos associados
Famílias de compradores compulsivos mostram
maior tendência a desenvolver outros transtornos como do humor, dependência
química e transtornos alimentares. “Além disso, há uma relação bastante próxima
entre a oniomania com o transtorno obsessivo compulsivo e o transtorno bipolar.
A soma destas patologias com as distorções sobre o ato de consumir motiva o
comprador compulsivo a desenvolver uma suposta segurança por meio das compras”.
Ao ficar longos períodos sem consumir, a
pessoa que tem compulsão por compras também pode sofrer de abstinência com
sintomas similares aos da dependência do uso de substâncias químicas:
irritabilidade extrema, perda de autoestima, sintomas de humor deprimido,
ansiedade e oscilações de humor.
O psiquiatra cinta ainda outros sinais da
doença:
- Descontrole financeiro: Além das
“armadilhas virtuais”, o consumo ganhou atratividade por meio de maiores
facilidades de pagamento ou diversas ofertas pontuais. “Hoje, há várias formas
de um comprador compulsivo se enrolar financeiramente, seja pagando o mínimo do
cartão de crédito, aderindo ao cheque especial ou contratando crediários”.
- Compras escondidas: Para o indivíduo com
oniomania, comprar sem ninguém saber e esconder os itens em casa já são parte
do processo de compra. “Por ser considerada uma postura socialmente reprovável,
o medo da censura e do julgamento explicam o comportamento de nutrir a
compulsão em segredo”, diz Adiel Rios.
- Peças repetidas, esquecidas ou nunca
usadas: a pessoa compra itens sem experimentar ou praticamente iguais, pois nem
se lembra do que tem no armário. “Em um determinado momento, o indivíduo não
tem nem mais espaço para guardar tanta coisa e acaba amontoando tudo no fundo
do guarda-roupa, ficando esquecido por lá”, completa o psiquiatra.
- Sensação de culpa após uma compra: como em
outros transtornos, após efetuar uma compra e vivenciar a sensação de prazer,
vem depois o sentimento de culpa e sofrimento. “Quando acaba aquele bem-estar,
ocorre uma sensação de impotência diante do descontrole da compra. Logo, surge
o ciclo de prazer-luto, sendo consequência da visão distorcida sobre a
finalidade do consumo em nossas vidas”.
- Origem familiar e genética: não há estudos
definidos que comprovem as causas da doença, mas a literatura médica relaciona
o transtorno a alguns fatores. “Um deles está associado com a história
comportamental da família do indivíduo”, diz o especialista.
Tratamento
Segundo o psiquiatra, há inúmeras abordagens
terapêuticas capazes de auxiliar quem sofre deste transtorno.
“Os tratamentos incluem o acompanhamento por
fármacos, como ansiolíticos e antidepressivos, psicoterapias e até consultoria
com um especialista em finanças pessoais. Os tratamentos têm como objetivo
atribuir um novo significado à relação gratificação-recompensa, mostrando que
há outros caminhos para lidar com as dores e formas muito mais saudáveis de
obter bem-estar e prazer na vida”.
Há ainda grupos de apoio, como o Devedores
Anônimos, onde outros compulsivos compartilham suas experiências.
Controle dos gastos
Na opinião da educadora financeira Lorelay
Lopes, para o consumidor sem ou com compulsão por compras, a regra é simples:
um orçamento bem estruturado. “Quando você tem, na ponta do lápis, todas as
suas contas, inclusive os pequenos gastos, você passa a ter clareza do quanto
ainda pode gastar. O problema não está em comprar aquele sapato que vai
combinar apenas com um vestido do seu guarda-roupa. Nem naquele descascador de
abacaxi que vai fazer o serviço de qualquer outra faca já disponível na gaveta
da cozinha. O problema está em gastar sem ter orçamento livre para pagar.”
Quem tem compulsão por compras convive todos
os dias com a culpa. “Um orçamento bem feito elimina este sentimento a partir
do momento que você tem certeza que todas as compras foram feitas de forma
consciente. Se o orçamento permite, tudo bem em gastar. Claro que esse
orçamento também tem que incluir seus investimentos a longo prazo, afinal
ninguém vive somente do presente. Não pensar no futuro também vai tirar aquela
sensação de tranquilidade ao deitar a cabeça no travesseiro pela noite”.
A educadora lista dicas práticas para correr
das compras por impulso:
- Faça um orçamento bem elaborado: entradas,
gastos fixos, gastos variáveis e investimento;
- A partir do orçamento, crie teto de gastos
em categorias: vestuário, tecnologia, delivery, etc. “Se eu posso gastar R$ 200
com vestuário, vou fazer escolhas melhores”, destaca Lorelay;
- Não compre contabilizando as parcelas, mas
sim, o total da compra;
- Analise se você já tem algo que cumpre a
mesma função daquela compra. “Por exemplo, um tênis branco, se eu já tenho um e
estou comprando outro apenas por conta da promoção ou porque acho mais bonito
que o que já possuo. Você vai abandonar o tênis atual? Ele já merece ser
abandonado?. Essas perguntas ajudam na reflexão sobre a compra”, diz a
educadora.
- Pense no impacto ambiental da sua compra:
vou jogar algo no lixo a partir desse novo item? Se sim, essa compra é
realmente necessária?
- Equilibre quantidade e qualidade: preciso
de quantas calças jeans? De quantos jogos de jantar? Qual será a frequência de
uso?
“Entenda que, quanto mais consumimos, mais
nos tornamos reféns da organização e manutenção de tudo isso. Comprar nos
oferece um prazer imediato, mas dizer não ao impulso nos dá um prazer ainda
maior. Acredite: tudo que envolve disciplina libera uma carga hormonal de
felicidade e realização muito mais duradoura que o prazer momentâneo da
compra”, finaliza Lorelay.